Colecionador tem alma peregrina

Depois de instituir o Museu do Oratório, em Ouro Preto, a empresária mineira concebeu o Museu de Artes e Ofícios, recém-inaugurado em Belo Horizonte, para o qual doou 2.300 peças - ferramentas, engenhocas, equipamentos -ligadas ao universo do trabalho

Valor: O teólogo e escritor Frei Betto escreveu recentemente um artigo elogiando seu desempenho à frente do Instituto Cultural Flávio Gutierrez e, ao mesmo tempo, fez uma crítica à elite, acusando-a de adquirir obras de arte "para exibi-las em suas mansões". A crítica é justa?
Ângela Gutierrez: As nossas elites ainda não compreenderam a importância da arte e da cultura na construção da identidade de um povo e seu papel no desenvolvimento de uma nação. Isso vai desde a visão egoísta do simples acumular e de uma incompreensão da arte e da cultura como expressão coletiva até a falta de investimento e de apoio a projetos culturais. Mas é inegável que uma fatia considerável da elite empresarial brasileira já assimilou a importância de apoio a bons projetos.

Valor: Como se deu sua paixão pela arte brasileira?
Ângela: É herança de meu pai, que também era colecionador. Dele herdei esse interesse pela busca, pela descoberta de peças raras, não só por aquelas valiosas, mas também por outras de valor histórico, cultural e simbólico, como é o caso do acervo do Museu de Artes e Ofícios. Naturalmente, essa paixão tem raízes profundas em Minas Gerais, com toda a singularidade que marca esse território cultural.

Valor: A senhora juntou um acervo precioso. Como se deu a busca de novas imagens?
Ângela: O colecionador tem alma peregrina, uma curiosidade natural. Onde quer que esteja está sempre pronto a ir um pouco além em busca de seu objeto de desejo. No princípio era mesmo uma aventura, sempre pelo interior, em lugares de difícil acesso. Depois que meu trabalho se tornou mais conhecido os objetos passaram a chegar até mim. Algumas peças fui encontrar em feiras de rua, no exterior, mas a maioria vem dos rincões do país. Outras, surgem em lugares imprevisíveis. Na formação do acervo do Museu de Artes e Ofícios, por exemplo, busquei o que estava abandonado e esquecido nas fazendas: instrumentos de trabalho, engenhocas, ferramentas, equipamentos usados no Brasil pré-industrial. Nesse processo de visitar todo tipo de lugar, encontrei num ferro-velho a balança de escravos do século XVIII, que considero emblemática.

Valor: Por que a senhora decidiu doar a coleção de oratórios, a maior do país, ao patrimônio público? O Brasil está pronto para cuidar de acervo tão precioso?
Ângela: Acredito que há um momento na vida do colecionador em que ele sente que a coleção é maior que ele, que é preciso compartilhar e permitir que outras pessoas usufruam a beleza, a emoção, o significado de uma obra de arte. Não é uma decisão fácil. Há um lento processo de desapego, um aprendizado para a transferência do foco do prazer, que deixa o campo estreito do nosso olhar e se transfere para uma dimensão coletiva. Só fui ter consciência plena disso depois que concluí o Museu do Oratório, em 1998. Senti um imenso vazio, confesso. Foi somente com o museu em funcionamento, depois que pude ver e sentir a reação das pessoas, o estado de encantamento de crianças ou gente muito simples, é que compreendi o que estava buscando e me senti recompensada. Não sei se o paí s está preparado para cuidar adequadamente de acervos. Sei é que a população está não só preparada e ávida para recebê-los, mas também está consciente de sua importância, e pronta para fiscalizar, para exigir das autoridades o respeito e o cuidado com o patrimônio público. Estou confiante, tanto que acabo de doar o acervo de 2.300 peças do Museu de Artes e Ofícios.

Valor: Qual sua avaliação da gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura?
Ângela: Acho que o ministro Gilberto Gil está fazendo uma gestão muito boa, considerando as extremas dificuldades da área, que remontam há muito tempo. Já fui secretária de Cultura em Minas e conheço bem os problemas que ele vem enfrentando de falta de verbas, de falta de estrutura, num país de carências extremas, em que é muito difícil estabelecer prioridades. Ainda assim, acho que ele vem, com sensibilidade e determinação, empreendendo projetos importantes no plano interno, principalmente, de descentralização da ação do Ministério da Cultura, e também no âmbito internacional, ao atuar como um verdadeiro embaixador, levando a riqueza da cultura brasileira pelo mundo.

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